Vítimas do franquismo querem driblar anistia espanhola por meio da justiça argentina

Ópera Mundi

Com base no princípio de justiça universal, familiares de torturados e desaparecidos abrem querela no país sul-americano.

Desde abril de 2010, uma causa aberta na Argentina alimenta a esperança de justiça para vítimas de crimes cometidos durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), desatada pela sublevação comandada pelo “generalíssimo” Francisco Franco, e pela ditadura que comandou até sua morte, em novembro de 1975.

Com base no princípio de justiça universal, que permite que os crimes contra a humanidade sejam investigados judicialmente fora do Estado onde foram cometidos, familiares de vítimas do franquismo decidiram apresentar uma denúncia à Justiça argentina. Entre as denúncias estão fuzilamentos, desaparições forçadas, tortura e roubo de bebês, entre outros.

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“Não podemos ficar só com a investigação histórica. Queremos saber quem são os responsáveis pelos crimes cometidos e quais crimes cometeram. Queremos uma retratação perante a sociedade”, afirma Ines García Holgado, argentina que abriu a causa em 2010 junto a Darío Rivas, de 93 anos, filho de uma vítima do franquismo.

Em entrevista a Opera Mundi, Ines conta que perdeu quatro parentes durante a Guerra Civil e nos anos posteriores. Seu avô, que foi condenado à prisão por “auxílio à rebelião”, morreu em circuntâncias duvidosas quando, já solto, caiu do sétimo andar do prédio da Direção Geral de Pesca, em San Sebastián, no País Vasco, onde estava exilado e atuava no grêmio de pescadores. Seu tio, que havia nascido na Argentina e estudou medicina na Espanha, desapareceu durante a Guerra Civil. Seus dois tios-avós, Elias e Luis García Holgado, eram políticos e foram fuzilados por “adesão à rebelião.”

Ines e Darío abriram caminho para a abertura do processo judicial, mas hoje são mais de 300 pessoas que fizeram denúncias que integram o expediente da causa. “A ideia é abranger integralmente a ditadura franquista, com casos de julho de 1936 a junho de 1977”, conta Carlos Slepoy, advogado argentino exilado na Espanha durante a ditadura, após ter sido preso em seu país, e que integra a equipe jurídica que trabalha na causa aberta no país sul-americano.

“São muitos setores afetados. Estão as vítimas diretas e também os casos de bebês sequestrados, que variam entre 30 mil e 300 mil segundo diferentes estimativas. Depois da década de 1950, é incalculável”, diz Slepoy, que conversou por Skype com a reportagem de Opera Mundi. O advogado explica que o objetivo é também elucidar o assassinato de sacerdotes opositores ao regime de Franco, violações sistemáticas de mulheres, perseguição a homossexuais e os casos de presos políticos submetidos a trabalho escravo durante a ditadura do “generalíssimo.”

Adriana Fernández é uma dessas mais de 300 pessoas que decidiram somar sua denúncia à querela argentina. Depois de entrar em contato com a organização espanhola ARMH (Associação para Recuperação da Memória Histórica), que a ajudou na investigação sobre as circunstâncias em que o pai de seu pai havia sido assassinado, em 1936, Adriana descobriu que seu avô não havia sido morto em uma briga de vizinhos, como contava seu pai. No atestado de óbito que recebeu da ARHM, figurava que “havia sido morto na luta contra o marxismo”, o que confirmou sua suspeita de que seu familiar tinha sido vítima da perseguição franquista.

Adriana Fernández e Inés García HolgadoEm 2011, Adriana viajou à Espanha com seu pai e seu tio para exumação do corpo do avô e, quando soube da querela na Argentina, se aproximou para integrá-la com sua denúncia. “Não se trata só de enterrar meu avô e que ele possa ser sepultado com a sua família. É preciso buscar justiça, lutar pela memória de todos”, pondera. “É importante para a construção da memória de um país. E por mais que na Espanha digam que isso é passado, são crimes contra a humanidade que não prescrevem.”

Lei de anistia e indultos

Não é a primeira vez que a história de ditaduras de Espanha e Argentina (1976-1983) se encontram. Em 1997, o juiz espanhol Baltazar Garzón aplicou o princípio de justiça universal para pedir a detenção por responsáveis de crimes cometidos pelas ditaduras de Chile e Argentina. Na época, militares e civis argentinos que haviam sido condenados nos primeiros anos da volta à democracia estavam anistiados por decretos que o ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) assinou entre 1989 e 1990. Em agosto de 2010, a Suprema Corte do país declarou a inconstitucionalidade dos indultos.

“Ainda que alguns delitos não possam ser reparados, a existência de uma justiça que castigue os responsáveis, principalmente frente a crimes cometidos pelo Estado, significa uma reparação espiritual”, diz Slepoy. “Quando Pinochet foi detido eu fui lá com fotos de companheiros assassinados e desaparecidos e senti que era uma homenagem a eles, que não tinham sido esquecidos e seus algozes estavam pagando pelos crimes que cometeram”, lembra.

Em setembro deste ano, a juíza argentina María Servini de Cubría, que está à frente da causa iniciada por Ines em 2010, emitiu, via Interpol, ordens internacionais de detenção para quatro acusados de crimes cometidos durante o franquismo. Até agora, a justiça espanhola não atendeu o pedido, que está em trâmite e afetaria dois dos réus, Juan Antonio González Pacheco y Jesús Muñecas Aguilar.

Na Argentina, mesmo com os indultos, os movimentos de direitos humanos seguiram mobilizados por justiça e Slepoy considera que a abertura de processos no exterior, como o que Baltasar Garzón levou à frente na Espanha, permitiu derrubar aos poucos as barreiras para o julgamento de crimes cometidos durante a ditadura.

“A ideia de que os direitos humanos devem ser defendidos internacionalmente é muito efetiva, é uma demonstração de solidariedade universal entre os povos”, avalia Slepoy. “Nosso lema em relação aos casos do franquismo e da ditadura argentina é ‘hoje por nós, amanhã por vós’, porque sem justiça a democracia é uma palavra feia.”

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